quinta-feira, 15 de janeiro de 2009

Desenho criança em campo de concentração


Monalisa

BEBA MONALISA - Frederico Morais

Diariamente bebem-se 30 milhões de Coca-Cola nos 210 países onde ela é vendida. O Museu do Louvre, em Paris, vende, todo mês, 25 mil postais da Mona Lisa e pelo menos um, em cada grupo de dezoito visitantes, adquire uma reprodução da obra de Leonardo da Vinci. Beber Coca-Cola tornou-se um hábito. Ver a Mona Lisa, uma obrigação de qualquer turista que vai a Paris. Contudo, o tempo gasto diante da Gioconda é quase sempre menor que o de beber uma Coca-Cola. Desde que os museus se transformaram numa extensão do turismo internacional, a experiência estética dos milhares de visitantes se reduz, na maioria das vezes, à compra de um postal.
Parece impossível pensar o mundo de hoje sem Coca-Cola. Mas é possível pensar a história da arte sem a Mona Lisa – a menos interessante entre as chamadas "obras-primas" do pintor renascentista. No entanto, pode-se percorrer uma boa parte da história da arte contemporânea tomando-se apenas aquelas obras em que a Coca-Cola aparece como tema.
A Coca-Cola é um sistema completo. Ela é ao mesmo tempo o maior ícone do consumo e um símbolo do poder econômico dos Estados Unidos. Independente do regime político e da forma de governo, essa invenção norte-americana tem sido consumida, nos cinco continentes, por liberais, comunistas, socialistas, anarquistas ou guerrilheiros da Sierra Maestra, por católicos e protestantes, pretos e brancos, índios e esquimós, pobres ou ricos. Para Andy Warhol, ela é o melhor exemplo da democratização do consumo: "... você está diante da televisão, vê um anúncio da Coca-Cola e sabe que o presidente dos Estados Unidos bebe Coca-Cola, que a Liz Taylor bebe Coca-Cola, que você pode beber uma Coca-Cola. Uma Coca é uma Coca e nenhuma quantidade de dinheiro pode conseguir-lhe uma Coca melhor do que a que o cara da esquina está bebendo". A Coca-Cola é um estilo de vida. É um exemplo de marketing global: junto com a Coca-Cola exportou-se para todo o mundo o "american way of life". O design da garrafa é ergonomicamente perfeito. A Coca-Cola é quase tudo: economia, política, ideologia, história, marketing, publicidade, forma, conteúdo, moda, colecionismo, mito. E, como todo mito, polivalente, contraditório, ambíguo, repleto de segredos e histórias paralelas.
Definida pelo farmacêutico John Pemberton, que a inventou em 1886, como um xarope capaz de curar "todos os males da alma e do corpo", ela foi ganhando com o tempo, no imaginário popular, características de uma verdadeira panacéia, desempenhando funções bem mais prosaicas como, por exemplo, desentupir canos.
Era inevitável, portanto, que a Coca-Cola se tornasse uma das principais referências iconográficas da arte contemporânea, a partir da Pop Art, que, não por acaso, é a principal expressão artística da sociedade de consumo. Rauschenberg, Warhol, Rosenquist, Wesselmann, Segal e Mel Ramos, entre muitos outros artistas, figuraram em seus quadros, esculturas ou instalações o objeto ou o signo Coca-Cola. Se em Warhol a ênfase é posta na repetição exaustiva, relacionando a multiplicação serigráfica à natureza industrial do tema iconográfico, em Mel Ramos, Wesselmann, Charles Frasier e Marisol (artista venezuelana desde muito tempo residindo nos Estados Unidos) há uma regressão à fase oral, a Coca-Cola substituindo o seio materno ou deixando fluir uma forte carga erótica.
No geral, entretanto, os artistas que integraram ou tangenciaram a Pop Art revelam uma certa neutralidade ideológica, ou são, como em Warhol, decididamente afirmativos no tocante aos valores da sociedade norte-americana. Contrariamente a esse comportamento cool dos norte-americanos, temos a postura hot dos latino-americanos. Para artistas como Luis Camnitzer, Antonio Caro, Cildo Meireles ou Nelson Leirner, a Coca-Cola significa, antes de tudo, a expansão do imperialismo norte-americano. No primeiro trabalho da série denominada Inserções em Circuitos Ideológicos, Cildo grava na garrafa o slogan "Yankees go home", devolvendo-a ao consumo, realizando, assim, um trabalho de contra-informação ideológica. Leirner montou um verdadeiro exército com latas de Coca-Cola, Clécio Penedo, numa série de desenhos magnificamente realizados, idealizou uma campanha visando aumentar o consumo do refrigerante nas comunidades indígenas, enfatizando o mesmo caráter regressivo de seus colegas norte-americanos, enquanto Caro, somando o estilo cursivo da grafia da Coca-Cola ao arredondado do nome de seu país natal, fez uma crítica contundente à dominação da Colômbia pelo capital multinacional e, de permeio, aludiu ao papel desagregador do narcotráfico na sociedade colombiana. E se Antonio Manuel substituiu o xarope pela sua urina e Ricardo Ribenboim pelo mercúrio, que é puro veneno, Décio Pignatari compôs, num telegráfico e incisivo poema concreto, o anagrama cloaca.
Afirma-se que apenas duas pessoas conhecem a fórmula do xarope que está na origem da Coca-Cola, o que faz dela um dos segredos mais bem guardados do mundo. Um dos temas recorrentes entre os analistas da Mona Lisa é o enigma do seu sorriso. Mas haveria mesmo um enigma? Segundo as informações disponíveis, trata-se de um retrato de Mona Lisa del Giocondo, executado entre 1502 e 1506, ou entre 1503 e 1505, em Florença. Partindo do pressuposto de que as mulheres grávidas têm um sorriso diferente do habitual, especulou-se sobre a possível gravidez da Gioconda. Mas há quem duvide de que se trate de um modelo feminino: a Mona Lisa poderia ser o retrato de um homem, de um andrógino ou até mesmo um auto-retrato. Gratuidades. Para a arte contemporânea, importa muito mais o gesto de Marcel Duchamp acrescentando barba e bigode à Mona Lisa, no seu famoso readymade de 1919. O artista francês foi um mestre em trocadilhar com as palavras, tencionando, sistematicamente, a relação entre imagem e texto, ou entre a obra e seu título. Não se limitou ao trompe-l’oeil, buscando também o trompe-l’oreille. Augusto de Campos matou a charada. O título enigmático de sua Mona Lisa embigodada, L.H.O.O.Q pode ser lido assim: "Elle a chaud au cul". Ou em bom português: "Ela tem o rabo quente". Vale dizer, Duchamp deslocou o enfoque do sorriso da modelo para o seu bumbum. Barba e bigode seriam então apenas uma forma de desviar nossa atenção do verdadeiro propósito do artista: enfrentar o modelo leonardesco por detrás.
Como se vê, o maior ícone do consumo e um dos maiores ícones da arte universal são iconograficamente reversíveis. Artistas como Andy Warhol e Nelson Leirner abordaram os dois temas em séries simultâneas ou paralelas, sem mudar fundamentalmente o enfoque. Quantidade e indiferença. Jacqueline Kennedy, Marilyn Monroe, Mao-Tsé-tung, Mona Lisa, Coca-Cola, Sopa Campbell, a foice e o martelo, uma cadeira elétrica, um desastre automobilístico, a flor e a vaca, Warhol trata todas essas imagens, inclusive a sua, com a mesma frieza e distanciamento. Ele sabe que na indústria cultural tudo se reduz à condição de mercadoria, tudo é consumido vorazmente, à margem de toda e qualquer hierarquia. O que conta é a quantidade. Como ele diz no título de uma serigrafia na qual repete trinta vezes a imagem da Gioconda: "Thirty are better than one". A tese que subjaz na obra de Warhol é esta: quantidade gera qualidade. À força de repetir-se, o produto torna-se cada vez melhor. Com a ajuda da publicidade, é claro.
Na verdade, em Andy Warhol, mais importante que a obra, ela mesma, é o próprio artista. Como nenhum artista deste século, nem mesmo Dalí, ele soube usar a sociedade do consumo em seu benefício. Transformou-se numa máquina produtiva, fez-se ele mesmo uma griffe valorizadíssima, aproximando-se dos ricos e dos poderosos. Mas isso também fez Leonardo da Vinci, que entre seus muitos afazeres, dos quais a pintura não foi o que mais lhe ocupou o tempo, estava o de cozinhar, organizar festas e inventar passatempos para a nobreza que o protegia.
Ao consumo, pois. Sorria. Divida com a Mona Lisa o prazer de uma Coca-Cola. Drink a coke. Things go better with Coke. Isso é que é.

Celso Vitelli, "Autorretrato em vermelho", 2011.

Celso Vitelli, "Autorretrato em vermelho", 2011.

Celso Vitelli, "Casamentos Pélvicos", 1994, veludo s/papel corrugado

Celso Vitelli, "Casamentos Pélvicos", 1994, veludo s/papel corrugado

Celso Vitelli, "Casamentos Pélvicos", 1994, detalhe

Celso Vitelli, "Casamentos Pélvicos", 1994, detalhe

Celso Vitelli, "Anástrofe", 1994.

Celso Vitelli, "Anástrofe", 1994.

Celso Vitelli, "Expectatu", veludo s/papel corrugado, 1994

Celso Vitelli, "Expectatu", veludo s/papel corrugado, 1994
Foto de Elaine Tedesco

Celso Vitelli, "Bixo", 1993, tecido s/papel corrugado

Celso Vitelli, "Bixo", 1993, tecido s/papel corrugado

Celso Vitelli, "Silêncio", 1992

Celso Vitelli, "Silêncio", 1992

Celso Vitelli, "Siga Nesta", 1997.

Celso Vitelli, "Siga Nesta", 1997.

Celso Vitelli, "Fêmurs e Fíbulas" ,1998

Celso Vitelli, "Fêmurs e Fíbulas" ,1998

Celso Vitelli, "Criação de adão com bolinhas de sabão" (detalhe), tecido e guache s/papel corrugado

Celso Vitelli, "Criação de adão com bolinhas de sabão" (detalhe), tecido e guache s/papel corrugado
1993

Celso Vitelli, "O Golpe", 1993, tecido s/papel corrugado.

Celso Vitelli, "O Golpe", 1993, tecido s/papel corrugado.

Celso Vitelli, "Traição", 1993, tecido s/papel corrugado.

Celso Vitelli, "Traição", 1993, tecido s/papel corrugado.